*"Do Juízo Estético "*

Toda a arte pressupõe regras na base das quais uma produção, se deve considerar-se artística, é representada, em primeiro lugar, como possível; mas o conceito das belas-artes não permite derivar o juízo sobre a beleza da produção de qualquer regra que tenha um conceito como princípio determinante, em virtude de pôr como fundamento um conceito do modo por que tal é possível. Assim, a arte do belo não pode inventar ela mesma a regra segundo a qual realizará a sua produção. Mas, como sem regra anterior um produto não pode ser artístico, é necessário que a natureza dê a regra de arte ao próprio sujeito (na concordância das suas faculdades), isto é, as belas-artes só podem ser o produto do génio.
Daí se conclui:
1º Que o génio é o talento de produzir aquilo de que se não pode dar regra determinada, mas não é a aptidão para o que pode ser apreendido consoante uma qualquer regra; portanto, a sua primeira característica é a originalidade.
2º Que as suas produções, visto que o absurdo também pode ser original, devem simultaneamente ser modelos, isto é, ser exemplares; por consequência, não sendo obras de imitação, têm de ser propostas à imitação das outras, isto é, servir-lhes de medida ou de regra critica.
3° Que ele mesmo não pode indicar cientificamente como leva a cabo a sua obra, mas que dá, enquanto natureza, a regra; portanto, o autor duma obra devida ao seu génio não sabe de onde lhe vêm as ideias e não depende dele concebê-las a seu grado ou segundo um plano, nem comunicá-las a outros em prescrições que os habilitariam a produzir obras semelhantes. (...)
Tal mestria é incomunicável, é propiciada directamente a cada qual por intermédio da natureza, desaparece, pois, com cada um até que a natureza confira a outro os mesmos dons; e a este mais não resta que ter um modelo para deixar manifestar-se de tal modo o talento de que tem consciência.
Visto que o dom da natureza deve estabelecer a regra da arte (belas-artes), qual é, pois, tal regra? Não é possível formulá-la para servir de preceito, pois que nesse caso o juízo sobre o belo seria determinado por conceitos, mas a regra deve ser extraída do acto mesmo, isto é, do produto, deve servir aos outros de pedra de toque para o seu próprio talento, como um modelo para uma imitação que não deve ser servil. Como é tal coisa possível? Eis o que é difícil esclarecer. As ideias do artista despertam no discípulo ideias semelhantes, se a natureza dotou este de faculdades equivalentes. Os modelos da arte são, pois, os únicos guias que podem perpetuá-los.

Emmanuel Kant, in "Critíca do Juízo"

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*"Bem Supremo e Razão"*

Quando a experiência me ensinou que os acontecimentos ordinários da vida são fúteis e vãos e me apercebi de que tudo que era para mim causa ou objecto de receio não tem em si mesmo nada de bom ou de mau, a não ser na medida da comoção que excita na alma, resolvi, finalmente, indagar se existia um bem verdadeiro e susceptível de se comunicar, qualquer coisa enfim cuja descoberta e posse me trouxessem para sempre um júbilo continuo e soberano.
(…) O que nos ocupa mais frequentemente na vida e que os homens, como pode concluir-se dos seus actos, consideram ser o bem supremo pode reduzir-se a três coisas: riqueza, fama, prazer dos sentidos.
Ora cada um deles distrai o espírito de tal modo que mal pode pensar noutro bem. (…)
- Pelo prazer sensual se detém a alma como se repousasse num bem verdadeiro, o que a impede em absoluto de pensar noutra coisa; após o prazer vem a extrema tristeza, que, se não suspende o pensamento, perturba e embota. A busca da fama e da riqueza não absorve menos o espírito, sobretudo quando a riqueza é desejada por si mesma, conferindo-lhe, então, a categoria de bem supremo.
- Mas a fama absorve o espírito de maneira muito mais exclusiva ainda: porque sempre é considerada como bem em si mesma e como fim derradeiro para que tudo converge. Além disso, a fama e a riqueza não contêm em si próprias o castigo como o prazer; ao contrário, quanto mais se tem uma ou outra, mais cresce a alegria experimentada. De onde a consequência de sermos cada vez mais incitados a acrescentá-las. Se, pelo contrário, em alguma ocasião somos iludidos na nossa esperança, ficamos profundamente tristes. A fama, por derradeiro, é ainda grande estorvo, porque para a alcançar temos de orientar necessariamente a vida em conformidade com a maneira de ver dos homens, quer dizer, evitar o que eles comummente evitam e buscar o que eles buscam. (…)
- Limitar-me-ei a dizer aqui brevemente o que entendo por um verdadeiro bem e também o que é o bem supremo. Para o entender com rectidão, devemos notar que bom e mau se dizem num sentido puramente relativo. A ponto de uma só e mesma coisa ser tida por boa ou má segundo os aspectos que consideramos; o mesmo sucede com o perfeito e o imperfeito. Coisa alguma, efectivamente, pode ser dita de natureza perfeita ou imperfeita. Sobretudo quando se perceba que tudo quanto acontece se produz de acordo com uma ordem eterna e com leis determinadas da natureza. (…)
- Entretanto, como o homem, na sua fraqueza, não abarca essa ordem pelo pensamento e concebe alguma natureza humana muito superior à sua, e, ao mesmo tempo, não vê impedimento na aquisição de uma semelhante, é levado a procurar meios que o conduzam a essa perfeição: tudo o que servir de meio a lá chegar é denominado verdadeiro bem. E o supremo bem consiste em chegar a fruir, com outros indivíduos se possível, dessa natureza superior. O que é essa natureza, havemos de vê-lo a seu tempo: é o conhecimento da união do espírito com a natureza inteira.
Tal é, pois, o fim a que tendo: alcançar essa natureza superior e fazer quanto puder para que outros a alcancem comigo; porque é ainda uma parte da minha felicidade trabalhar para que muitos conheçam claramente o que é claro para mim, de maneira que o seu entendimento e o seu desejo se harmonizem plenamente com o meu próprio entendimento e o meu próprio desejo. Para lograr esse fim é necessário ter da natureza um conhecimento que baste à aquisição dessa tal natureza humana e, também, formar uma sociedade apropriada a que o maior número possível de homens alcancem o fim tão fácil e seguramente quanto puder ser.

Baruch Espinoza, in '"Tratado da Reforma e do Entendimento "

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*Um tostão(zinho) para o Santo António*

Andava um garoto a pedir um tostãozinho para o Santo António. Uns davam, outros não.
Até que passou por ele um senhor de sobretudo comprido, até aos pés, e de sandálias, vejam bem. E se estava frio!
O garoto, cá de baixo, reparou no desconcerto, não deu importância. E vá de pedir:
— Dê-me um tostãozinho para o Santo António…
O senhor do sobretudo castanho todo esfarrapado debruçou-se para o miúdo e, sorrindo, disse-lhe assim:
— Tanto andas tu a pedir como eu. Hoje ainda não me deram nada.
— A mim já — respondeu o garoto. — Quer ver?
E mostrou-lhe, na palma da mão, umas tantas moedas. O mendigo contou-as.
— Davam e sobravam para pagar uma sopa e um pão, ali, na taberna da esquina — observou o mendigo.
— Mas eu não tenho fome — preveniu o garoto. — A minha mãe deu-me de almoçar, ainda agora. O senhor mendigo suspirou e disse:
— Pois a minha mãe já morreu. Deve ser por isso que ainda não comi nada, hoje…
O mocinho olhou para o homem, a certificar-se se seria verdade o que ele dizia. Os olhos tristes do mendigo garantiram-lhe que sim.
Foi a vez de o garoto suspirar:
— Este dinheiro era para eu comprar berlindes…
O homem de sandálias admirou-se:
— Mas tu, há bocadinho, não pedias para o Santo António?
O garoto riu-se:
— É um costume. Quero eu lá saber do Santo António! É tudo para os berlindes.
O mendigo não estranhou a revelação. Percebia-se, a conversa ia ficar por ali. Despediu-se:
— Ainda tenho hoje muito que andar. Adeus e boa colheita.
O rapazinho viu-o descer a ruela, num passo cansado. Então, num impulso, correu atrás dele e puxou pela ponta da corda, que o homem trazia à roda da cintura:
— Tome lá para um pão e para uma sopa. Mas não vá ali àquela casa da esquina, que são uns mal-encarados. Na outra rua abaixo, há mais onde comer.
O homem de sandálias e sobretudo roto, que lhe davam um ar de frade de antigamente, agradeceu as moedas e o conselho e seguiu caminho.
O garoto voltou ao seu poiso. E quando, pouco depois, porque estava frio, meteu as mãos nos bolsos, encontrou-os atulhados de berlindes…

António Torrado in"O mercador de coisa nenhuma"
Porto, Livraria Civilização Editora, 1994

*Hino Nacional...A Portuguesa*

A História do Hino
Em 11 de Agosto de 1890, o governo inglês enviou por via telegráfica um ultimato para que todas as tropas portuguesas se retirassem da zona conhecida pelo nome de “mapa cor-de-rosa”, correspondente aos actuais Zimbabué e Malawi. O lacónico telegrama britânico ameaçava Portugal com uma intervenção militar, pelo que o governo português, perante a exigência de um país tão rico e poderoso, cedeu e evacuou a região. Isto originou diversas manifestações, que foram aproveitadas pelos republicanos na sua propaganda contra a monarquia.
O compositor Alfredo Keil, indignado, sentou-se ao piano e compôs uma música marcial de conteúdo vibrante. Depois foi ter com o poeta Henrique Lopes de Mendonça para que escrevesse a letra com o sentido da revolta que grassava nas ruas. Após alguns dias, estavam escritas as três estrofes da composição musical. No entanto, ao longo dos tempos, tem sido alterada a ordem da segunda e da terceira estrofe, que acabou por se normalizar. Mais tarde, por diversas razões, houve quem contestasse a letra, mas como, em princípio, só se cantava a primeira estrofe, a riqueza da melodia serve de compensação. O seu título, “ A Portuguesa “, é que ninguém contestou.
Ainda em 1890, Alfredo Keil instrumentou a música para ser tocada por banda. Foi assim que quando surgiu a primeira tentativa da revolução republicana, em 31 de Janeiro de 1891, uma banda tocava sem cessar “ A Portuguesa “, só parando após o malogro da revolução. Depois foi proibida a execução do “pretenso hino”.
Após a implantação da República, em 5 de Outubro de 1910, o governo provisório fê-lo adoptar como Hino Nacional e conferiu-lhe todas as honras militares e civis. Nos primeiros tempos do novo regime “ A Portuguesa “ era tocada pelas bandas militares e civis no final dos seus concertos em praças públicas.

b. Autor da Música

Alfredo Keil nasceu em Lisboa, em 3 de Julho de 1850, e faleceu em Hamburgo, em 4 de Outubro de 1907, após melindrosa operação cirúrgica a que não resistiu.
Foi pintor, poeta, arqueólogo e coleccionador de arte Seu pai era oriundo de uma família do ducado de Nassau, que em 1838 se veio estabelecer em Lisboa; sua mãe era descendente de uma família alsaciana. Alfredo estudou no Colégio Britânico e desde pequeno mostrou inclinação para o desenho e para a música. Quando terminou o liceu foi estudar artes para Nuremberga, na Alemanha. Recebeu muitos prémios nacionais e estrangeiros. As suas músicas, essencialmente as óperas, foram apresentadas nos mais importantes teatros de Portugal, do Brasil e de Itália.

c. Autor da Letra

Henrique Lopes de Mendonça nasceu em Lisboa em 12 de Fevereiro de 1856 e faleceu em 24 de Agosto de 1931.
Foi escritor, manifestando, desde jovem, grande tendência para a Literatura. Seguindo carreira na Marinha, foi promovido a Aspirante em 1871, viajando depois pelos portos da Europa e de África. Iniciou a sua carreira dramática com a comédia em 1 acto A Noiva, representada no Teatro D. Maria II em 1884. Era sócio da Academia das Ciências e do Instituto de Coimbra. Foi professor de História na Escola de Belas-Artes de Lisboa. Escreveu poesia, história e romance. Passou à situação de reforma, em Maio de 1912, no posto de capitão de mar e guerra. Era condecorado com a comenda da Ordem de Avis.

d. A Letra do Hino

Heróis do mar, nobre povo,
Nação valente, imortal,
Levantai hoje de novo
O esplendor de Portugal!
Entre as brumas da memória,
Ó Pátria, sente-se a voz
Dos teus egrégios avós,
Que há-de guiar-te à vitória!

Coro

Às armas, às armas,
Sobre a terra, sobre o mar,
Às armas, às armas,
Pela Pátria lutar
Contra os canhões marchar, marchar!

*"Cegueira de Olhos Abertos"*

A cegueira que cega cerrando os olhos, não é a maior cegueira; a que cega deixando os olhos abertos, essa é a mais cega de todas: e tal era a dos Escribas e Fariseus. Homens com os olhos abertos e cegos. Com olhos abertos, porque, como letrados, liam as Escrituras e entendiam os Profetas; e cegos, porque vendo cumpridas as profecias, não viam nem conheciam o profetizado.
[...] Esta mesma cegueira de olhos abertos divide-se em três espécies de cegueira ou, falando medicamente, em cegueira da primeira, da segunda, e da terceira espécie. A primeira é de cegos, que vêem e não vêem juntamente; a segunda de cegos que vêem uma coisa por outra; a terceira de cegos que vendo o demais, só a sua cegueira não vêem.

Padre António Vieira, in "Sermões"

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